quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Rigor Mortis I

1 - O violeiro

Na vida o que tudo começa,
Hora ou outra terá fim.
A morte sempre tem pressa,
Mas isso nem sempre é ruim:

O violeiro que mal vivia
Buscou na morte a solução,
Vendo que a vida o iludia
Achou melhor encarar o caixão.

Até a encruzilhada andou
Com a corda e um plano,
Visto que nada alcançou
No que buscou naquele ano.

Ao pé da árvore chegou
Com obstinação e malevolência:
A corda na árvore amarrou
Tão forte como sua decadência.

Com pedras e madeiras fez
O altar para sua execução:
Sentiu uma fraqueza talvez,
Pois sentia tremer suas mãos.

Subiu no rude apoio,
E enlaçou no pescoço a corda.
Separava assim o trigo do joio,
Após passar do apoio, a borda.

2 - A morte

A corda esticou subitamente,
E assim suas vistas escureceram.
Debatia-se no ar loucamente,
Seus arrependimentos apareceram.

Devagar os sentidos se foram
E não sentia mais suas pernas.
Os seus braços não o ajudaram,
A dor não foi mais uma fera.

Seus pensamentos se esvaiam
Mas não esquecia do preço,
Pois as culpas não saíam:
Apareciam do começo.

Achou força onde não tinha,
Mas nada foi suficiente.
O remorso que agora vinha
O apunhalou de maneira tangente.

Rogou a Deus e aos anjos,
Mas ninguém ouviu seu chamado.
Rogou em seu último folego:
Resolveu chamar o Diabo.

A corda antes esticada,
Num estalo seco arrebentou,
Caindo ao chão em pancada
O violeiro vivo ficou.

3 - O Diabo

Quase inconsciente com a queda,
O violeiro ainda não entendia
Que aquilo que ocorreu era
Uma segunda chance, ele vivia.

Com os olhos semicerrados
Viu uma figura que não compreendeu:
Dois grandes cascos de cavalo,
Nessa hora o violeiro estremeceu.

Levantando com dificuldade
Colocou-se de pé minimamente,
E viu que aquilo na verdade
Chegou a chacoalhar sua mente.

Com a voz muito apertada
Se questionou da figura ao seu lado.
Lembrou-se da própria cilada,
De ter chamado o Diabo.

Estava com medo o violeiro
Por aquilo que havia enxergado,
E na sua cabeça ainda nevoeiro
Queria o Diabo não ter chamado.

Com um sorriso no rosto
Apresentou-se a ele a figura
E assim com muito gosto
Falava ao violeiro com desenvoltura:

4 - O Pacto

"Eu sou os números que não chegam,
E sou o filho que nunca virá,
Eu sou as flores que não desabrocham
Eu sou o oposto de Javé e Alá.

Vim aqui para poupar-te
Pois a mim foi recorrido,
Mas agora prepara-te,
Tens contas a ver comigo.

Toda fera que na Terra habita
E que vão além da humana visão,
Irá tu vê-las, agora, acredita,
Pois haverá de busca-las então.

Estas feras ao mundo lançadas,
Fazem parte do meu panteão,
Deverá tu violeiro, aprisioná-las
Durante 66 anos de antemão."

O violeiro quis negar-se
Mas o Diabo o ameaçou:
"Obedeça ou mostro a minha face
E levar tua alma ao inferno vou.

Toma pois esta profana viola,
E toca quando ver o sinal,
Será a forma que tu tens agora
De sobreviver os dias afinal."

5 - O trabalho

Num lâmpido estalo o Diabo sumiu
E o violeiro sozinho ficou.
Um pavoroso medo ele sentiu
Quando na viola uma nota tocou.

Sua visão se abriu
E tudo o que avistava mudou.
O que enxergava era vil
E preocupado com isso ficou.

Surgiu da estrada de repente
Uma besta com jeito equino,
Mas a estrutura mostrou-se diferente:
Não possuía cabeça, era algo maligno. 

Em direção ao violeiro correu
Batendo os cascos afiados no chão,
O violeiro então se apercebeu
De que tratava-se de uma fera do panteão.

Desviou da besta como num relance
E esbaforido perdeu o chapéu,
Chegou a besta novamente ao seu alcance,
E seu medo rasgou como um véu.

Vendo a fera a ele chegando,
A viola no colo empunhou,
E com um toque profano tocando
A besta que corria ao seu pé findou.

6 - A viola

Admirou-se com o fato
De ter tocado tamanha melodia,
E que com o decorrer do ato
A besta então mataria.

Com a viola em mãos sentiu-se forte,
E tal instrumento era uma arma.
Poderia ele então fugir da morte
Ou condenaria assim sua alma?

Percebeu que a viola em questão,
Havia derrubado um monstro terrível.
Ainda pensou se não era imaginação,
Pois sentia-se então invencível.

Ao abaixar-se para pegar o chapéu,
Viu subitamente um enorme clarão.
A besta que a pouco morreu
Em fogo consumiu-se no chão.

No lugar da mesma apareceu uma moeda,
Que após esfriar foi tomada pelo violeiro.
Soube ele que com isso pagaria a divida
Do trabalho que recebeu do Carniceiro.

No paletó xadrez guardou a moeda,
E a corda que no pescoço estava retirou.
Olhou para todos os lados da estrada
E rumo a cidade o violeiro andou.

Fabiano Favretto




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